ZEIS: ferramenta estratégica de luta por moradia

“Aqui é uma ZEIS! Só se pode construir moradias populares”. Cartilha ZEIS. Prefeitura de Santos/SP, 1991 (AMORE, 2013).

As Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS) são um tipo especial de zoneamento urbano instituído na década de 1980. Salvador foi pioneira na instituição de regramentos especiais para territórios populares, quando demarcou a Zona Homogênea do Nordeste de Amaralina e as Áreas de Proteção Sócio-ecológica no final da década de 1970. Apenas em Recife, entretanto, iniciativa semelhante assumiu esse nome ZEIS e ganhou visibilidade nacional, consagrando-se como conquista da luta histórica dos movimentos sociais pelo direito à moradia digna e à cidade.


Nesse período, o modelo de urbanização brasileiro, desigual e excludente, movimentou um amplo debate a partir da ideia de reforma urbana. Experiências locais de política urbana e políticas relacionadas à moradia como as de Recife (Programa de Regularização de Zonas Especiais e Interesse Social – PREZEIS) e Belo Horizonte (Programa Profavela), ganharam corpo e foram implantadas em outros municípios brasileiros.

Essas experiências pautaram o elitismo da legislação urbanística brasileira, que estigmatizava a moradia popular, e trouxeram à tona o processo de segregação social que orientava (e orienta) o crescimento urbano brasileiro. Isso aconteceu através de uma articulação política conhecida como Movimento Nacional pela Reforma Urbana que propôs uma emenda de iniciativa popular à Assembleia Constituinte, em 1987. Essa emenda, ao instituir o princípio da função social da propriedade e da cidade, buscava impor limites ao direito de propriedade, criando novos ideários em torno da política urbana no país. 

Matéria da Folha de S. Paulo, 20 de maio de 1981.

Matéria do jornal À tarde, 7 de fevereiro de 1983.

Em 2001, a aprovação do Estatuto da Cidade (Lei Federal nº 10.257), que regulamenta o capítulo da política urbana da Constituição de 1988, consolidou as ZEIS como instrumento jurídico federal, vinculado ao Plano Diretor, que se efetiva como base da política urbana nacional. Os zoneamentos presentes nos planos diretores municipais definem o que, como e onde se pode construir nas cidades.

A implantação das ZEIS busca inverter a lógica predominante do zoneamento urbano como reserva de terrenos e proteção de valores de mercado. Fazer valer as ZEIS é promover justiça habitacional, evitar a especulação imobiliária sobre as áreas de moradia popular e orientar a urbanização e a regularização fundiária. É, portanto, um instrumento de reconhecimento de direitos, que permite intervir sobre as regras que definem o uso e a ocupação do solo urbano, instituindo normas e índices urbanísticos específicos (que permitam a regularização fundiária e a criação de planos e intervenções também específicos) e reservam terrenos ou prédios, bem localizados e com infraestrutura, para produção de habitação de interesse social. 

De 2001 pra cá, a inserção da ZEIS nos planos diretores só fez crescer no Brasil todo. Este instrumento se subdivide em dois tipos básicos: ZEIS de vazios e ZEIS de áreas ocupadas. As ZEIS de vazios demarcam áreas vazias, não utilizadas ou subutilizadas, a serem destinadas à produção de habitação de interesse social em áreas bem localizadas e servidas de infraestrutura urbana. As ZEIS de áreas ocupadas, por sua vez, demarcam áreas públicas ou privadas onde se assentam territórios populares e/ou de povos e comunidades tradicionais considerados prioritários para a regularização fundiária e urbanística.

Apesar da presença significativa das ZEIS nos planos diretores de todo país, o resultado ainda é insatisfatório. É comum não haver delimitação em mapa, nem a identificação das subcategorias das ZEIS ocupadas ou indicação de ZEIS de vazios nesses planos.  Da mesma forma, a sua efetivação está longe de ter sido conquistada por inteiro. Na maioria dos casos, as ZEIS, mesmo quando demarcadas, não foram regulamentadas, o que as impede de cumprir seus objetivos no âmbito das políticas urbana e habitacional.

A presença das ZEIS nos planos diretores municipais representa o reconhecimento do direito à moradia e da posse dos moradores (no caso de ZEIS de áreas ocupadas) e, por esse motivo, é importante nas disputas por permanência popular nos territórios, ajudando até a prevenir remoções forçadas. Apesar disso, são muitos os desafios e ameaças para a sua efetivação real. A força do mercado imobiliário ainda é grande, os lobbys são poderosos, entretanto, e sem dúvida, a existência deste instrumento jurídico com força de lei permanece, ainda, como instrumento estratégico de luta dos movimentos sociais urbanos em sua luta diária por moradia digna e participação social efetiva nos projetos habitacionais populares.


Para saber mais:

Você mora em uma ZEIS, sabia?”. Cartilha explicativa das ZEIS em São Paulo. Disponível em:http://www.labcidade.fau.usp.br/wp-content/uploads/2021/04/cartilha_ZEIS_para-aprovacao_digital_20210118.pdf.

Zona Especial de Interesse Social (ZEIS)”. Dicionário do Programa Nacional de Capacitação das Cidades. Disponível em: https://www.capacidades.gov.br/dicionario/index/letra/z.

Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS) nas Cidades Brasileiras: Trajetória Recente de Implementação de um Instrumento de Política de Terras”. Vídeo do Lincoln Institute of Land Policy. Disponível em: https://youtu.be/lER_RFkLEHg.

LIMA, Adriana Nogueira Vieira. “O Direito à Cidade e as Zonas Especiais de Interesse Social: um olhar sobre o município de salvador.” Disponível em: http://www.lexeditora.com.br/doutrina_24061427_O_DIREITO_A_CIDADE_E_AS_ZONAS_ESPECIAIS_DE_INTERESSE_SOCIAL_UM_OLHAR_SO%E2%80%A6.

ROLNIK, Raquel;  SANTORO, Paula Freire. “Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS) em Cidades Brasileiras: trajetória recente de implementação de um instrumento de política fundiária”. Lincoln Institute of Land Policy, 2013. Disponível em: https://www.lincolninst.edu/pt-br/publications/working-papers/zonas-especiais-interesse-social-zeis-em-cidades-brasileiras.

SANTO AMORE, Caio. “Entre o nó e o fato consumado, o lugar dos pobres na cidade: Um estudo sobre as Zeis e os impasses da reforma urbana na atualidade”. Tese de Doutorado. São Paulo, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, 2013.

SANTOS Jr., O. A.; MONTANDON, D. T. (Org.). Os planos diretores municipais pós-estatuto da cidade: balanço crítico e perspectivas. Rio de Janeiro: Letra Capital; Observatório das Cidades; IPPUR; UFRJ, 2011.